domingo, 25 de outubro de 2020

dança ou flauta

DANÇA OU FLAUTA?
Que preconceitos há por trás de uma tradução?

Por Dc. Joalsemar Araújo
Uma das questões mais debatidas na questão da utilização da dança na liturgia das igrejas evangélicas é o que realmente diz os salmos 149.3 e 150.4, já que em muitas versões aparece palavra ‘flauta’ em vez de ‘dança’. Os que defendem a dança litúrgica se embasam nesses versículos para legitimar sua prática e os que refutam a dança litúrgica sempre levantam a dúvida (e muitas vezes sua certeza) de que a o termo em questão se refere a flauta.

As Traduções
Nas versões da tradução de João Ferreira de Almeida (1628-1691), a mais querida e popular no meio evangélico, encontramos o seguinte: A versão Revista e Corrigida, edições de 1969 e 1995, traz a palavra ‘flauta’ no salmo 149.3; e no salmo 150.4, a de 1969 traz ‘dança’ e de 1995, ‘flauta’. Mas isso não se dá com outras versões em português. A antiga Tradução Brasileira (1917) e a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (2000) trazem ‘dança’ em ambos os versículos bem como versões de editoras católicas em português como famosa Bíblia de Jerusalém (1985) e a Tradução Ecumênica da Bíblia (1994). Em outros idiomas encontramos o equivalente a ‘dança’ em vez de ‘flauta’: Por exemplo, na King James Version (edição de 1769) temos a palavra inglesa dance(dança) e em francês encontramos danse (dança) na versão de Louis Segond (1910) para ambos os versículos.
Ilustração de João Ferreira de Almeida e
logomarca da Sociedade Bíblica do Brasil
O Texto Original
Mas o que diz o texto original em hebraico? No texto original temos a palavra machol que significa 'dança' e é originária de uma palavra que indica ‘girar’, 'movimentar-se em círculo’. Será que a palavra não se referiria ao uso de um tipo de flauta que se deveria tocar dando voltas ou girando o instrumento como alguns argumentam? Não. Ela se refere mesmo a dança. Vejamos:

  •            a) A palavra hebraica padrão para flauta é ugav. Há também a palavra chaliyl que indica flauta ou pífaro (Isaías 30.29). Não há referência que indique machol como flauta;
  •           b) A dança judaica era e é caracterizada pelo movimento circular e por grupos de pessoas que dançam em círculo; até no hebraico moderno machol significa 'dança';
  •            c) A mais antiga tradução da Bíblia hebraica, a Septuaginta, traduz em ambos os versículos machol por chorós, isto é, ‘dança’ no que foi seguida pelas versões posteriores como a Vulgata Latina.
Se no texto original e na maioria das traduções antigas e modernas prevalece a palavra ‘dança’ por que se encontra ‘flauta’ em outras versões?

Judeus ortodoxos dançando
Preconceito?
Entendo, com pesar, que o motivo da troca de ‘dança’ por flauta’ em algumas versões da Bíblia em detrimento do texto original é o preconceito contra a dança na liturgia cristã. Por que tendo as evidências do texto original, do contexto histórico e cultural a palavra foi traduzida de modo diferente? Infelizmente, isso não é novidade na história do texto da Bíblia. A perícope da Mulher Adúltera (João 7.53 – 8.11), embora reconhecidamente inspirada por Deus, não fez parte por um bom tempo do cânon da Bíblia. Os manuscritos mais antigos do evangelho de João disponíveis não a trazem bem como os mais antigos códices bíblicos. Além disso, alguns manuscritos trazem a perícope no evangelho de Lucas (cujo estilo é mais similar a perícope do que o de João) ou no fim do evangelho de João. Praticamente só a partir do início da Idade Média é que os manuscritos começaram a reproduzir a história da Mulher Adúltera no evangelho de João e assim permaneceu. Alguns estudiosos da crítica textual do Novo Testamento que concluem que o texto é uma peça antiga e autêntica da vida de Jesus, mas que não foi escrita por João e demorou-se a fixar-se no cânon bíblico.
 
Cristo e a Mulher Adúltera:
Ilustração de 1865 do célebre Gustave Doré

Não está em questão sua historicidade ou inspiração divina, a qual o texto emana. Há testemunhos dos primeiros cristãos (Pápias no século II e a Didascália dos Apóstolos no século III) de que a história da Mulher Adúltera era bem conhecida dos cristãos e usada como exemplo da bondade do Senhor.
Mas por que houve tanta demora (ou resistência?) a que esse registro de um episódio tão significativo da vida de Cristo fizesse parte da Bíblia? O conceituado biblista Joachim Gnilka nos dá uma indicação valiosa:

Mas a resistência que podemos observar contra ela, e que tornou sua aceitção tão problemática, está relacionada com seu objetivo. Para muitos a história pareceu escandalosa. A bondade de Jesus para com uma pecadora foi sentida como uma coisa capaz de provocar escândalo. Dificilmente se poderá encontrar outra explicação para esta situação”[1].

O teólogo Wilson Paroschi, especialista em Crítica Textual do Novo Testamento, afirma:

Com respeito à demora em ser aceita pelos cristãos em geral, essa poderia muito bem ser atribuída à rígida disciplina eclesiástica para com o adultério, uma vez que a narrativa revela que Cristo perdoou muito facilmente a mulher; somente quando a disciplina adotou métodos menos intolerantes, após o século IV, foi que a igreja teria estado disposta a aceitá-la” [2].

Creio que o que aconteceu a história da Mulher Adúltera foi o que aconteceu com a substituição de ‘dança’ por ‘flauta’. O medo do escândalo que pode causar a dança no culto. O gosto pessoal de tradutores e comentaristas interferiu na tradução. O não gostar de dança ou de não gostar de associá-la a Deus interferiu na tradução em detrimento do texto original e em detrimento do próprio gosto de Deus (não é ele o alvo da liturgia?) já que o Antigo Testamento mostra com clareza que Deus era adorado com danças.

Conclusão
O intuito desse texto é esclarecer quanto à questão do que diz o texto original dos salmos 149.3 e 150.4 bem como protestar contra a manipulação preconceituosa do texto bíblico. O texto original e a maioria das traduções (só citamos alguns exemplos acima) trazem ‘dança’ e não ‘flauta’. O objetivo não é tornar a dança litúrgica obrigatória para todas as denominações evangélicas, as quais têm liturgias próprias e diferentes orientadas por suas tradições históricas e líderes locais, mas contribuir para a aceitação da dança litúrgica nas várias formas de adoração ao Criador como expressas na Bíblia, tal qual testemunhadas na Bíblia.
O rei Davi dançando em adoração a Deus

NOTAS
[1] GNILKA, Joachim. Jesus de Nazaré: Mensagem e História. Editora Vozes: Petrópolis, 2000, p.107.
[2] PAROSCHI, Wilson. Crítica Textual do Novo Testamento. Edições Vida Nova: São Paulo, 1993, p.205.

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